07/10/2011

As Valquírias na Mitologia Viking: Um Estudo Diacrônico

“(...) a figura da Valquíria: ela é matadora de homens – em sua qualidade de mensageira de Odin, é bem verdade, e de executante de suas sentenças – mas é, ao mesmo tempo, uma sedutora: não há quem resista a seus encantos propriamente mágicos”. Régis Boyer, Mulheres viris, 1997b.

No resgate e popularização da mitologia nórdica, poucas narrativas fascinam tanto como a do mito das valkyrjor (singular - valkyrja: valquíria). Celebradas pela música wagneriana, pela literatura, cinema e até mesmo pelas histórias em quadrinhos, as guerreiras de Óðinn ocupam um lugar especial em nosso imaginário sobre a cultura dos Vikings. Mas até que ponto essa nossa contemporânea, construída pela arte oitocentista, corresponde ao que os escandinavos imaginaram originalmente? Qual o papel das valkyrjor para a religião e a sociedade nórdica?
Nossa principal hipótese é a de que o mito das valkyrjor esteve vinculado a certos fatores sociais relacionados com a aristocracia e a realeza - com finalidades de legitimação dos poderes políticos e sociais destas mesmas classes. A metodologia que adotamos no presente artigo são as teorizações do historiador francês Régis Boyer. Influenciado pelo mitólogo Georges Dumézil, Boyer aplica a teoria da tripartição social dos povos de origem Indo-Européia especificamente para os estudos de religião escandinava. A concepção cósmica de mundo, os rituais e as divindades seriam concebidos em termos de ordem social. Para Régis Boyer os mitos e os cultos nórdicos foram construídos gradativamente, passando por acréscimos sucessivos (BOYER, 1981: 10). Essa concepção diacrônica também será adotada por nós, bem como as atuais pesquisas que demonstram as influências culturais estrangeiras no processo de formação religiosa dos Vikings (DUBOIS, 1999; DAVIDSON, 1988, 1994) (1).
A sociedade nórdica estava originalmente dividida em duas grandes categorias, a dos homens livres (karls) e a dos escravos (thræll). A maior parte da população livre era constituída de fazendeiros (bóndi, pl. bœndr), que também dedicavam-se ao comércio, a navegação e a guerra. A aristocracia hereditária (jarl) constituía o pequeno grupo que mantinha seus privilégios nas comunidades, especialmente nas assembléias gerais (things) e nos vínculos com a corte real (hirð). Toda a política e o suporte militar era definido pelo chefe local (lendrmaðr, membro da aristocracia), mas a autoridade absoluta era centrada no rei (konungr), que também exercia o papel de principal sacerdote público. A grande maioria da população livre era adepta dos cultos ao deus Þórr e aos vanes (entidades relacionadas à fertilidade, especialmente Freyr e Freyja). A aristocracia e a realeza perpetuavam especialmente os rituais ao deus principal do panteão germano-escandinavo, Óðinn (Odin, “fúria”), na qual o mito da valkyrjor estava intimamente relacionado.
A palavra original do Nórdico antigo, Valkyrja, significa “a que escolhe os mortos” (BOYER, 1997a: 164). Entidades sobrenaturais relacionadas diretamente com marcialidade, a sua associação com o destino dos guerreiros mortos na batalha remete a uma tradição mítica muito anterior aos Vikings, vinculada aos antigos germanos. Na literatura anglo-saxã do século VIII surge o termo wælcyrge (“a que escolhe os mortos”) (2). Hilda Davidson e Régis Boyer apontam três e Brian Branston quatro fases nas imagens das valkyrjor, mas todas possuindo aspectos relacionados à batalhas, ou seja, de entidades femininas ligadas a conflitos. (3)

A origem do mito: as valkyrjor como entidades monstruosas
A primeira dessas imagens corresponde à representação mais antiga do mito, talvez herdada diretamente dos antigos Germanos. Nela, as valkyrjor corresponderiam a seres grotescos, sanguinários, sobrenaturais, sedentos de sangue, promotores de carnificina em batalhas e mortandades. Verdadeiros “augúrios de luta e morte; elas às vezes aparecem para os homens em sonhos” (DAVIDSON, 2004:54). A mais importante fonte para essa descrição é um poema tardio islandês, Darraðarljóð (“A canção da lança”), integrante de Nijal’s Saga do século XIII. Numa visão de sonho que teria ocorrido antes da batalha de Clontarf em Dublin (1014), um estranho grupo de 12 mulheres foi visto tecendo uma macabra tapeçaria feita de cabeças e entranhas de homens. O poema é composto de 12 estrofes e 88 versos:

“A urdidura é feita de entranhas humanas;
Cabeças humanas são usadas como pesos;
As varas do tear são lanças encharcadas de sangue;
As hastes são firmes,
E flechas são as lançadeiras.
Com espadas nós teceremos
A teia da batalha. (2ª estrofe, NJÁL’S SAGA 157)

É horrível agora
olhar para o redor,
uma nuvem vermelha de sangue
Escurece o céu.
O firmamento está manchado
com o sangue dos homens,
e as valkyrjor
cantam sua canção”. (10ª estrofe, NJÁL’S SAGA 157).


Podemos perceber no poema as valkyrjor como tecelãs do destino dos homens, sendo comparáveis as nornir (nornas). Um destino terrível, sangrento. Verdadeiras agentes da morte, escolhendo quais guerreiros tombarão no campo de batalha, trazendo muito sangue e dor, cujo símbolo principal é a lança, o maior atributo do deus Óðinn. Algumas hipóteses foram criadas para tentar explicar essa representação tão terrível do mito original. Donahue acreditava que na Antiguidade, quando Celtas e Germanos estavam em contato próximo, havia uma crença coletiva em sangrentos espíritos de guerra femininos (DAVIDSON, 2004: 55). Na mitologia céltica existia uma deusa denominada Morrigu (“corvo”), representada sob a forma deste pássaro e que excitava os guerreiros para as batalhas (MARKALE, 1999: 181). O corvo também é um dos animais associados ao deus Óðinn e as valkyrjor. Outra hipótese é relacionadas às sacerdotisas dos antigos cultos para divindades da guerra entre os germanos. Como a maioria desses cultos eram muito violentos, contando algumas vezes com sacrifícios humanos após os conflitos, o mito de seres femininos sangrentos poderia ser uma lembrança desse aspecto religioso:
“como era sempre decidido em sorteio quais prisioneiros seriam mortos, a idéia de que o deus ‘escolhia’ suas vítimas, por meio da intermediação das sacerdotisas, devia ser muito familiar, fora a óbvia suposição de que alguns eram escolhidos para morrer em guerra” (DAVIDSON, 2004: 51).
E o próprio sacrifício era efetuado pelas sacerdotisas, seja com um corte na garganta, seja pelo espetamento com lanças, enforcamentos e queimas (DAVIDSON, 1988, 58-68; 2001: 97; 2004: 45).
Nas fontes anglo-saxônicas do século VIII ao XIV, as Wælcyrge aparecem como sinônimos de entidades maléficas da mitologia clássica ou mesmo bruxas. Nos manuscritos Corpus Christi (séc. VIII) e Ms. Cotton (séc. X), elas são associadas com as erínias (as Fúrias dos romanos). Na obra De Laude Virginitatis (séc. VIII) do bispo Aldhem, a palavra wælcyrge é utilizada como sinônimo para Veneris, enquanto que em outro manuscrito o sinônimo são as górgonas (4). Outro bispo inglês, Wulfstan (Sermo Lupi, séc. X), incluiu as welcryge numa lista de praticantes do mal, juntamente com as bruxas e pecadores. O poema Cleaness (séc. XIV) também as compara com as bruxas (ELLIS, 1968: capítulo III; DAVIDSON, 2004: 51-53; BRANSTON, 1968: 333-334). Mesmo que sejam descontados os óbvios “filtros” destas fontes cristãs, percebemos que a associação das valkyrjas como entidades maléficas e sanguinárias provém de uma tradição muito mais antiga, da Inglaterra paganista anglo-saxônica.
Ainda no mundo germânico da Antiguidade Tardia, aparecem algumas referências a seres femininos sobrenaturais atrelados com as guerras. Em poemas anglo-saxões, essas personagens estão relacionadas com encantamentos para proteger guerreiros em batalhas. Do mesmo modo, no famoso encantamento alemão de Merseburg (século IX), elas são chamadas de Idisi (5), e relacionam-se com a capacidade de paralisar homens no momento das lutas:

“Uma vez que as Idisi pousaram aqui,
resolveram aqui e lá;
Algumas prender grilhões;
algumas obstruir o grupo na guerra,
algumas afrouxar os vínculos do bravo.
Salte para adiante dos grilhões! Escape dos grilhões!” (MERSEBURG I)


Trata-se de um encantamento para abrir “correntes”, ou seja, tanto desfazer outros encantamentos como para obter poder sobre os inimigos. Em muitos encantamentos anglo-saxões do mesmo período, existem referências a lanças mágicas atiradas por mulheres poderosas, infringindo dor aos guerreiros, interpretado por Hilda Davidson como sobrevivência de antigos encantamentos para batalhas (2004: 53). Ainda nestes mesmos tipos de fontes, surge o termo sigewīf (“mulheres da vitória”), associando esses seres às abelhas (DAVIDSON, 1988: 96). Um animal voador e que possuí ferrão, uma imagem simbólica muito próxima das valkyrjor e suas lanças. Desde a Idade do Bronze a representação da lança é um atributo do deus da guerra no mundo germano-escandinavo (BOYER, 1981: 66), elemento essencial de Óðinn e claramente vinculado com suas atendentes femininas. Interpretado geralmente como símbolo fálico, axial e solar (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002: 535), essa arma geralmente aparece nas epopéias e sagas nas mãos de heróis, deuses e reis. A associação das lanças com as valkyrjor não somente as torna mais masculinizadas, como também autoriza a sua identificação com os rituais de morte do deus Óðinn.

A idealização guerreira: servas de Óðinn, condutoras para o paraíso.
Foi durante a Era Viking (799-1066 d.C.), que o mito das valkyrjor foi amenizado, transformado em uma representação mais dignificada, heróica e nobre.
O poeta islandês Snorri Sturluson resgatou durante o período cristão (Edda em Prosa, também denominada de Edda Jovem, 1220 d.C.), uma das imagens literárias mais populares dessas criaturas para a mitologia dos tempos Vikings:
“Há ainda outras para auxiliar no Valhöll, servir a bebida em volta, servir a mesa e os #$%&@#s de cerveja (...) Ódinn as envia para todas as batalhas, onde elas escolhem quem vai morrer, e as regras sobre a vitória” (STURLUSON).
Um papel duplo. Ao mesmo tempo em que são guerreiras e escolhem o destino das batalhas, transportando os homens tombados nos conflitos para o Valhöll (Valhala: “salão dos mortos” de Óðinn), neste mesmo local elas atuarão como serventes, semelhantes a taverneiras:
“Ces seraient alors des esprits des morts, privilégiés en quelque sorte, qui doivent se choisir des congénères. Elles traduiraient ainsi, admirablement, les idées centrales attachées à Ódinn, dieu des morts parce que régentant leur destin, quand bien même le sien prope lui échapperait” (BOYER, 1981: 142).
Essa dupla imagem também aparece em outra importante fonte do período cristão, a Elder Edda (Edda Antiga, também chamada de Maior ou Poética), uma compilação de poemas escandinavos escritos no final do século X ao XIII (e reunidos em um único manuscrito, Codex Regius, de 1300) (HAYWOOD, 2000: 60).
O mais antigo desses poemas, Völuspá (“a visão da profetisa”), composto em meados do ano 1000, possui uma estrutura nitidamente paganista (HAYWOOD, 2000: 203). Nele, estas criaturas sobrenaturais são representadas como guerreiras portando escudos. Seis nomes são mencionados: Gunnr (“batalha”), Hildr (“batalha”), Göndul (“que maneja a vareta mágica”), Skögul (“batalha”) e Geriskögul (“lobo de batalha”) (ELDER EDDA). Praticamente todos esses nomes estão relacionados com a guerra ou com características que as relacionam com conflitos armados. A associação entre a metamorfose do mito valquiriano na Era Viking com mulheres guerreiras reais é muito atraente para os analistas contemporâneos, apesar de ser uma questão ainda aberta a muitos debates (6).
Outro poema éddico, Grimnísmál (“os ditos de Grímnir”), repete alguns nomes e apresenta outros: Hrist (“a abaladora”), Mist (“a bruma”), Skéggjöld (“desgaste com machado de batalha”), Þrúðr (“força”), Hlökk (“barulho”), Herfjötur (“paralisia”), Göll (“lágrimas de batalha”), Geirólul, Randgríðr (“escudo da paz”), Ráðgriðr (“paz dos deuses”), Reginleif (“patrimônio dos deuses”). O interessante é que apesar do sentido destas denominações, as valkyrjor são apresentadas como servidoras do deus Óðinn e dos einherjar (singular: einheri, “guerreiro que combate sozinho”), os campeões mortos nas batalhas. Esse poema deve ter sido elaborado entre os séculos X e XI, visto que Snorri Sturluson baseou sua imagem literária no mesmo texto.
Poucas representações iconográficas sobreviventes da Era Viking apresentam as valkyrjor portando armas, capacetes, lanças, espadas, cotas de malha ou andando a cavalo. Em quase todos os pingentes e esculturas/pinturas em estelas, elas surgem como damas portando longos vestidos, cabelos bem arrumados e na maior parte das vezes, transportando um #$%&@# com bebidas. Do mesmo modo, as representações visuais de donzelas cisnes foram omitidas, com exceção de um objeto onde uma figura feminina lembra um pássaro. Apenas restaram as imagens das valkyrjor como serventes do Valhöll (7).
Dentre estas fontes iconográficas as mais importantes são as estelas funerárias da ilha de Gotland (Suécia). Executadas para glorificar os feitos do morto, mas também possuía um caráter religioso, elas serviam em um primeiro momento como reforço para os cultos solares, dos mortos e os rituais odinistas (BOYER, 1997a: 124). Também funcionaram como instrumentos pedagógicos visuais, mantendo a legitimação do poder político da classe aristocrática e da realeza, as principais estruturadoras do odinismo na Escandinávia Medieval (LANGER, 2003c). Com isso, as estelas só representaram uma faceta do mito. Em uma sociedade dominada por uma visão totalmente masculina, a representação da jornada de um guerreiro do mundo dos vivos para o mundo dos mortos não podia ser questionada ou abalada. Caso uma valkyrja fosse representada portando armas e montando cavalos (a exemplo dos guerreiros das estelas), ela seria um elemento contra a ordem de legitimação dos triunfos da realeza e dos heróis. Assim, sua imagem como serviçal reforça as representações de uma grande recompensa para uma vida marcial masculina, além de manter a ordem odinista (8).

A “domesticação” da guerreira: as valkyrjor como donzelas-cisnes
Seguindo a seqüência dos poemas da Edda poética, encontramos outras referências sobre nosso tema, desta vez em fontes mais recentes. A Völundarkviða (“A balada de Völundr”, século XIII) narra as peripécias de três filhos do rei da Lapônia. No momento em que estes caçavam ao redor de um lago, observaram três mulheres que fiavam e possuíam aparência de cisnes. Elas eram valkyrjor e também filhas de reis (Ölrún, “senhora da cerveja”; Hládgud Svánhvit, “branca como cisne”; Hérvor Álvit, “sábia”). Acabaram sendo tomadas como esposas por um período de sete anos, mas depois retornaram às suas atividades em batalhas e não mais regressaram. Percebemos que apesar da continuidade na associação das valkyrjor com as três nornir, tecendo o destino dos homens, surge uma nova imagem. Desta vez, as donzelas são representadas como tendo características de cisnes e acabam casando, além de pertencerem diretamente à realeza. O simbolismo deste animal vincula-se com a sua cor, branca, manifestação do poder e graça da luz (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002: 257).
Apesar da estrutura narrativa deste episódio ser um tema comum nas mitologias de origem indo-européia (9), a sua inserção dentro da trajetória do mito ocorre tardiamente na Era Viking. Segundo alguns pesquisadores, essa transformação foi resultado do longo trabalho de poetas após muitas gerações (DAVIDSON, 2004: 55). Relacionados diretamente com as cortes reais dos escandinavos, muitos poemas foram realizados para dignificar publicamente reis e heróis (HAYWOOD, 2000: 176). Com isso as donzelas cisnes surgem como integrantes importantes da narrativa heróica, elo sobrenatural entre o mundo odínico e a realeza. No poema Völundarkviða elas são filhas de reis e foram tomadas por guerreiros valorosos. Mas não podiam fugir as suas características básicas de agentes do destino, de tecelãs da vida dos homens. Após nove anos as três donzelas cisnes fogem e retornam a sua condição primordial de valkyrjor (ELDER EDDA). O número nove é o mais sagrado na religião Viking, associado ao deus Óðinn (principalmente ao período em que ele ficou enforcado na árvore Yggdrasill).

A idealização de proteção: as valkyrjor como agentes do destino heróico
Seguindo a seqüência tradicional da Edda Maior, encontramos três poemas relacionados ao herói Helgi. Na primeira história (Helgakviða Hjörvardssonar, “a balada de Helgi, o filho de Hjörvard”, século XIII) relata a trajetória do filho do rei Hjörvard e Sigrlin, um rapaz de grande tamanho mas sem fala e sem nome. No momento em que se encontrava pastoreando, o jovem príncipe avista um grupo de nove valkyrjor. A mais formosa destas mulheres aproxima-se e denomina o príncipe de Helgi (“sagrado”), além de presenteá-lo com uma espada com guarda-mão em forma de dragão (10). Com o auxílio desta arma mágica, Helgi venceu vários obstáculos, entre os quais matou um gigante chamado Hati. Seguindo a narrativa, Helgi se torna um grande líder e guerreiro, casando com Sváva, também filha de rei, que lhe havia presenteado com uma espada. No momento em que seu marido participava de batalhas, Sváva retornava a sua condição de valkyrja. Ao mesmo tempo em que serve como agente sobrenatural em toda a trama, Sváva protege o destino do herói – seja ao conferir-lhe o nome, como assistindo aos seus feitos de guerreiro. Na região de Sigarsvéllir, Helgi é ferido mortalmente, falecendo em seguida.
O segundo poema, Helgakviða Hundingsbana II (“a balada de Helgi, o matador de Hundingr”), narra que os dois personagens renasceram, Helgi como filho do rei Sigmundr e Sváva como Sigrún (“runa da vitória”), filha do rei Hogni (e do mesmo modo uma valkyrja) (11). Além de continuar sendo amantes, Sigrún conserva seu ímpeto de proteger o amado. No momento em que Helgi reuniu uma grande esquadra para se dirigir à região de Frekastéin, uma enorme tempestade ameaça a esquadra. Nove valkyrjor (entre as quais Sigrún) surgem voando e salvam a expedição. Também em outro poema éddico narrando a narrativa de Helgi como filho de Sigmundr (Helgakviða Hundingsbana I), as donzelas de Óðinn protegem o rei no momento de uma perigosa travessia marítima e no transcurso de uma batalha. Continuando a narrativa, Helgi é morto por seu cunhado. Este último, chamado Dag, havia planejado vingar-se do herói pela morte de seu pai, e com o auxílio da lança Gungnir (entregue pelo próprio deus Óðinn) atinge Helgi mortalmente. Chegando ao Valhöll, Helgi tornou-se o chefe dos einherjar. Algum tempo depois, ao visitar o túmulo do amado, Gúdrun consegue contatá-lo e saber do seu destino como intermediário odínico. Viveu mais alguns anos, antes de morrer e reencarnar como outra valkyrja de nome Kára (“cabeleira crespa”). O herói renasce como Helgi Haddingiaskati.
Nas três narrativas éddicas sobre este herói, percebemos a importância da figura das valkyrjor como intermediárias entre a realeza, o sobrenatural odínico e o destino do guerreiro no mundo dos mortais. Na realidade, o próprio personagem é a metáfora dos guerreiros pertencentes à aristocracia (jarls) e a realeza (konunga-kyn): “Helgi doit incarner la notion d’inviolabilité attachée au sol, à la famille immémoriale, aux grands ancêtres donc. Il est peut-être aussi en relation avec la notion de royauté sacrée dans le Nord” (BOYER, 1997: 79). Em vez de simples serviçais ou donzelas-cisnes que transformam-se em esposas (como vimos nos poemas éddicos anteriores), na tríade de Helgi essas criaturas míticas são apresentadas em uma forma muito mais doméstica, mas nem por isso menos protetoras: a personagem Sigrún/Sváva nomeia o herói; presenteia-o com um objeto mágico para que o mesmo consiga efetuar sua jornada; assiste-o nas batalhas; salva-o dos momentos de perigo; torna-se esposa e concebe filhos para ele; realiza os ritos funerários; renasce como companheira e amante. Na realidade, ela torna-se uma esposa extremamente atuante na vida do herói, a ponto de renascer várias vezes e amá-lo novamente, sem necessariamente transgredir nenhuma ordem social. Voltava a ser valkyrja somente quando o marido estava longe de casa.
Lado a lado com esse aspecto protetor, temos a idéia de que o herói (que depois transformava-se em rei) só conseguiria completar sua jornada épica devido a essa interferência sobrenatural. As agentes odínicas elegiam seu protegido. Do mesmo modo, podemos perceber essa mesma idéia no poema funerário em louvor ao rei Håkon Haraldsson (Hákonarmál):

“O rei escutou a fala das valkyrjor,
homem nobre, montado em seu cavalho de batalha;
elas reunem-se com seus capacetes, em profunda reflexão,
segurando seus escudos diante delas” (HÁKONARMÁL).


Somente os reis podem governar, porque apenas eles seriam os eleitos pelas valkyrjor, intermediárias diretas do mais poderoso deus do panteão germânico. A melhor forma de reconhecer a autoridade de uma liderança política é identificar os elementos simbólicos e sagrados que autorizem uma classe a perpetuar os seus membros no poder. No poema de Hákor, assim como na história de Helgi e em outras narrativas escandinavas, o rei apenas cumpriu o papel sagrado de governar a sua comunidade. Com um destino previamente estabelecido: o de ser escolhido e protegido pelas guerreiras de Óðinn. Diferentemente dos cultos a fertilidade (dos deuses vanes, celebratórios da vida no campo) – com o qual rivalizavam e disputavam espaço social e religioso - os cultos odínicos celebravam a guerra, a morte e acima de tudo, a autoridade da figura do rei e a legitimidade do poder da classe aristocrática.

As valkyrjor como transgressoras: as narrativas de Brynhyldr
Imortalizada pelas óperas de Wagner, Brynhyldr tornou-se a partir do século XIX na mais famosa valkyrja de todos os tempos. Os últimos poemas da Edda Poética narram algumas de suas façanhas (como o nome de Sigrdrífa, “nevasca de batalha”), bem como a Völsunga Saga.
No desfecho do poema éddico Fáfnismál (“os ditos de Fáfnir”), o herói Sigurðr (“favorecido pela vitória”), após matar o dragão Fáfnir e comer seu coração, consegue entender a linguagem dos pássaros da floresta. Estes comentam a respeito de uma sala existente na montanha Hindarfial, que seria cercada por fogo e ali dormiria uma valkyrja. Ela estaria recebendo um castigo por não ter agido do modo que Óðinn queria.
A narrativa prossegue no poema Sigrdrífumál (“os ditos de Sigrdrífa”). Chegando nesta montanha, Sigurðr contempla uma mulher dormindo, totalmente vestida com equipamentos de guerra: cotas de malha bem justas pelo seu corpo e elmo na cabeça. Utilizando sua espada mágica (Gramr), o herói rompe a malha do corpo, despertando a valkyrja. Ela contou que se chamava Sigrdrífa e as razões de ter sido encantada: fez morrer um rei cuja vitória em batalha havia sido prometida pelo deus Óðinn. Além do encantamento, deveria contrair matrimônio com um homem que não tivesse nenhum temor. Em seguida ela descreve a sabedoria das runas, suas utilizações para a magia e para elaborar encantamentos.
Esse caráter de uma grande sabedoria da valkyrja é reforçado na Völsunga Saga. Após beber e ensinar a Sigurðr os segredos das runas, Brynhyldr (“armadura de batalha”) profere vários conselhos sobre convívio, comportamento, enfim, regras sociais muito semelhantes às existentes no poema éddico Hávamál, todas de cunho odinista. Apesar de ambos jurarem fidelidade, posteriormente Sigurðr acabou casando-se com Guðrún, filha do rei Gjúki. Também auxiliou Gunnar (irmão de Guðrún), a conquistar o direito de casamento com Brynhyldr, por meio de uma metamorfose mágica (Sigurðr se faz passar por Gunnar, penetrando a muralha de fogo do palácio). Tempos depois, a valkyrja descobre toda a trama e instiga o assassinato de Sigurðr. Arrependida e em desespero, suicida-se junto à pira funerária do herói.
Em primeiro lugar podemos perceber a atitude de Brynhyldr, desobedecendo o deus Óðinn, como uma tentativa da mulher de se equiparar ao homen. Sendo uma valkyrja, ela é um ser incomum. O fogo é um símbolo odinista, bem como o segredo das runas. Ao penetrar o círculo de fogo e principalmente, ao retirar com sua espada a cota de malha da guerreira, o herói Sigurðr encarna o protótipo do ideal masculino: controlar a mulher e submetê-la ao domínio do lar. Essa dualidade da situação feminina pode ser percebida em uma passagem da Völsunga Saga, onde Bekkhildr foi descrita como típica mulher dedicada ao domicílio, enquanto que sua irmã Brynhyldr saía sempre de casa para lutar com elmo e cota de malha. A punição das valkyrjor é o casamento. É com essa prática que ela deixa de ser uma desafiadora do mundo masculino e torna-se dominada. Em outra passagem da Völsunga isso também é claro, quando Brynhyldr prediz o futuro para Sigurðr, afirmando que os dois não ficarão juntos e ela continuará a guerrear.
Nas outras narrativas que analisamos anteriormente, também verificamos que as donzelas-cisnes foram capturadas e tornaram-se simples mulheres com a união matrimonial: “Casar-se com um homem é, para uma Valquíria, pura punição inflingida por Odin” (BOYER, 1997b: 745). Tornando-se apenas reprodutoras da prole real, elas deixam de ser uma ameaça ao ideal guerreiro:
“quando as Valquírias consentem em ter um filho, perdem ipso facto seu status e se tornam simples mulheres, se assim se pode dizer, servas dos guerreiros-escolhidos do Válala e mães de príncipes. Como se houvesse incompatibilidade entre a mulher-cisne intocável ou a virgem com o elmo na cabeça, e a senhora da cerveja (Ölrun)” (BOYER, 1997b: 746).
Também em descrições históricas de mulheres guerreiras, como a famosa Hervor, percebemos que elas perdem essas características marciais com o casamento (12).

Epílogo: o significado do mito
Até o presente momento pudemos verificar as variações do mito ao longo da História, elaborando o seguinte esquema:

Evolução morfológica do mito das valkyrjas

Entidades sanguinárias incentivadoras de carnificinas (Antigüidade) → Selecionadoras dos mortos nas batalhas (Antigüidade Tardia) → Seecionadoras dos mortos e receptoras/serviçais no Valhöll (Período das migrações/Início da Era Viking) → Guerreiras de Óðinn, donzelas cisnes, esposas/amantes, filhas de reis (Final da Era Viking).

Esta metamorfose do mito é explicável, no caso da Era Viking, pelo trabalho dos poetas e poetisas, que acabaram dignificando muitos aspectos das narrativas orais. A existência de elementos de sujeição sexual nas imagens mitológicas de esculturas, assim como a transformação de entidades monstruosas em figuras da realeza, se deve diretamente a classe dos Jarls. Assim, podemos encontrar o significado do mito em dois níveis, o ideal masculino e a ideologia da realeza.
O poder dos homens na arte da guerra. Um dos ideais da classe guerreira era sujeitar todas as mulheres da sua comunidade ao seu controle direto. Somente os homens poderiam efetivamente ter o acesso ao espaço da guerra, aos triunfos militares e à glória da imortalidade nas batalhas, alcançando a recompensa futura. Mulheres guerreiras representavam um obstáculo ao seu poder social, bem como ao seu prestígio perante as comunidades em que viviam. As imagens esculpidas nas estelas representam o maior testemunho na busca de um controle sexista da arte da guerra, assim como as descrições do casamento das valkyrjor e a sua consequente perda de elementos marciais.
A conexão com a nobreza dos heróis e reis - a ideologia da realeza estruturava-se nos cultos odínicos. Nas fontes literárias, as valkyrjor nunca são representadas como simples camponesas (bóndisdóttir), filhas de pescadores (fiskrmaðrsdóttir), filhas de comerciantes (kaupmaðrsdóttir) e muito menos escravas (Þrællkona). Na maioria das fontes, elas apresentam-se como filhas de reis (konungasdóttir). Com isso, o mito legitima o poder real, o poder do konungr (“rei”) e da classe dos Jarl em geral, em detrimento das outras divisões sociais. Colabora com a criação de vínculos odinistas com os guerreiros vivos, a exaltar os feitos gloriosos dos heróis mortos, a estabelecer uma conexão sobrenatural com o poder da classe guerreira e a realeza, a minoria dominante.
Em uma sociedade onde a religião não era centralizada, sem organização de uma instituição central, sem hierarquias sacerdotais e com muitas variações regionais de cultos, o padrão mítico em comum (panteões divinos e cosmologias de origem germânicas) foi utilizado pela classes aristocráticas para fins políticos. O homem escandinavo comum, seja um camponês ou um comerciante, estava muito mais interessado no culto aos deuses vanes (propiciadores da fertilidade) e as possibilidade de aplicações religiosas em seu cotidiano: “a religião de Tor e dos Vanirs, onde a ênfase é a continuidade da família e da comunidade, em vez de qualquer imortalidade pessoal no outro mundo” (DAVIDSON, 2004: 183). Com isso, tanto as imagem de valkyrjor gravadas em estelas quanto as narrativas orais destas entidades proferidas em festivais públicos, cortes palacianas ou por poetas comunitários, enfatizavam a supremacia dos cultos a Óðinn, e em consequência, atendiam aos anseios de poder dos guerreiros e reis.



Por Prof. Dr. Johnni Langer – (UNICS, PR)
Artigo originalmente publicado na revista Brathair de Estudos Celtas e Germânicos, vol. 4, n. 1, 2004.

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