05/09/2010

I - Apolo - uma das divindades principais da mitologia greco-romana. 1ª PARTE.

Apolo Belvedere, uma das mais célebres representações do deus. Original grego de Leocarés, hoje nos Museus Vaticanos.

Apolo (em grego: Ἀπόλλων, transl. Apóllōn, ou Ἀπέλλων, transl. Apellōn) foi uma das divindades principais da mitologia greco-romana, um dos deuses olímpicos. Filho de Zeus e Leto, e irmão gêmeo de Ártemis, possuía muitos atributos e funções, e possivelmente depois de Zeus foi o deus mais influente e venerado de todos os da Antiguidade clássica. As origens de seu mito são obscuras, mas no tempo de Homero já era de grande importância, sendo um dos mais citados na Ilíada. Era descrito como o deus da divina distância, que ameaçava ou protegia deste o alto dos céus, sendo identificado com o sol e a luz da verdade. Fazia os homens conscientes de seus pecados e era o agente de sua purificação; presidia sobre as leis da Religião e sobre as constituições das cidades, era o símbolo da inspiração profética e artística, sendo o patrono do mais famoso oráculo da Antiguidade, o Oráculo de Delfos, e líder das Musas. Era temido pelos outros deuses e somente seu pai e sua mãe podiam contê-lo. Era o deus da morte súbita, das pragas e doenças, mas também o deus da cura e da proteção contra as forças malignas. Além disso era o deus da Beleza, da Perfeição, da Harmonia, do Equilíbrio e da Razão, o iniciador dos jovens no mundo dos adultos, estava ligado à Natureza, às ervas e aos rebanhos, e era protetor dos pastores, marinheiros e arqueiros. Embora tenha tido inúmeros amores, foi infeliz nesse terreno, mas teve vários filhos. Foi representado inúmeras vezes desde a Antiguidade até o presente, geralmente como um homem jovem, nu e imberbe, no auge de seu vigor, às vezes com um manto, um arco e uma aljava de flechas, ou uma lira, e com algum de seus animais simbólicos, como a serpente, o corvo ou o grifo.[1]

Apolo foi identificado sincreticamente com grande número de divindades maiores e menores nos seus vários locais de culto, e sobreviveu veladamente ao longo do florescimento do cristianismo primitivo, que se apropriou de vários de seus atributos para adornar seus próprios personagens sagrados, como Cristo e o arcanjo São Miguel. Entretanto, na Idade Média Apolo foi identificado pelos cristãos muitas vezes com o Demônio. Mas desde a associação de Apolo com o poder profano pelo imperador romano Augusto se originou um poderoso imaginário simbólico de sustentação ideológica do imperialismo das monarquias e da glória pessoal dos reis e príncipes. Seu mito tem sido trabalhado ao longo dos séculos por filósofos, artistas e outros intelectuais para a interpretação e ilustração de uma variedade de aspectos da vida humana, da sociedade e de fenômenos da Natureza, e sua imagem continua presente de uma grande variedade de formas nos dias de hoje.[1][2][3][4][5] Até mesmo seu culto, depois de um olvido de séculos, foi recentemente ressuscitado por correntes do neopaganismo.[6]

Origens

Era chamado pelos gregos de Apollon ou Apellon, pelos romanos de Apollo e pelos etruscos de Apulu ou Aplu. A origem do nome Apolo é incerta, bem como a de seu mito. Apolo é um nome que não tem paralelos claros em outras línguas indo-européias, e é o único deus olímpico que não figura nas cerca de mil tabuletas conhecidas escritas em Linear B, uma fonte de dados sobre a Grécia na Idade do Bronze. Embora essa omissão possa ser apenas casual e achados arqueológicos futuros possam trazer outras conclusões, em termos estatísticos permanece uma evidência significativa, o que aponta para uma origem possivelmente oriental e uma chegada à Grécia em período relativamente tardio. Graf sugere as seguintes hipóteses para sua origem: ele pode ter sido uma divindade indo-européia, presente mas não documentada na Idade do Bronze grega, ou foi introduzido após a Idade das Trevas grega, ou proveio do Oriente Próximo, possivelmente da Anatólia ou da região semita.[7]

Para Plotino seu nome significava a negação da pluralidade: "não-muitos", acresentando que para os pitagóricos significava o Uno. Plutarco seguia nessa linha dizendo que os pitagóricos associavam nomes divinos aos números, e que a Mônada era identificada com Apolo. Platão também pensava de forma semelhante, ligando Apolo com "o simples", e "o verdadeiro".[8] Burkert sugeriu que deriva de "manter uma assembléia sagrada", o que Nagy considerou plausível, baseado no que Hesíquio de Alexandria também referira, mas essa etimologia foi rejeitada por Frisk, Chantraine e Dietrich, que consideram a origem do nome simplesmente desconhecida. Bernal apresentou a hipótese de que derivou de Hórus, deus solar egípcio, através de adaptações fonéticas intermédias na Fenícia. Heródoto dizia que Apolo e Hórus eram o mesmo deus.[9][10]

Seu mito
“ Como devo te cantar, tu que por tudo que és mereces o louvor?
Homero, Hino a Apolo.[11] ”

As primeiras referências literárias a Apolo se encontram em Homero, na própria fundação da literatura grega. E neste momento o deus já aparecia tão carregado de atributos que o poeta considerava difícil escolher por onde começar seu elogio. Como fica evidente, apesar das incertezas sobre a origem do mito e da ausência de documentação anterior, no século VIII a.C. ele já estava consolidado. Apolo é citado na Odisséia, é o foco de um dos Hinos Homéricos, e é um dos deuses protagonistas na Ilíada, e dessas fontes provêm as primeiras descrições de sua história.[11]

Stanisław Wyspiański: Apolo lançando suas flechas contra os gregos, c. 1897. Coleção privada.

Na Ilíada Apolo se coloca contra os gregos, e luta pelos troianos. Ele surge para vingar o ultraje a seu sacerdote Crises, cuja filha Criseida havia sido capturada por Agamemnon, e já aparece mostrando algumas das facetas de seu caráter, a belicosidade e violência de que era capaz, e seus atributos de causador e curador de doenças, semeando a peste entre os soldados gregos, e derramando sobre eles seus raios de fogo como uma chuva de flechas certeiras. Para aplacá-lo, não apenas Criseida foi devolvida a seu pai, mas os gregos tiveram de oferecer ao deus "uma perfeita hecatombe de touros e cordeiros", além de cantos e danças. Satisfeito, suspendeu a praga. Também Apolo foi o responsável pelo antagonismo entre Agamemnon e Aquiles, protegeu os heróis troianos Pandaros, Páris e Enéias, e também Heitor enquanto pôde, frustrou as investidas de Pátroclo, Diomedes e Aquiles, e foi quem conduziu a flecha de Páris que matou Aquiles. Quando Glauco foi ferido por uma flecha de Teucros, orou para Apolo, que imediatamente fechou a ferida e devolveu-lhe as forças. Macaon e Podalírio, dois filhos de Asklepios, um dos filhos de Apolo, também estavam presentes na batalha.[12] Foi quem curou as feridas de Sarpedon, foi o instrumento de Zeus para evitar a profanação do corpo do guerreiro quando este foi morto, e velou pelo corpo de Heitor.[13] Na Ilíada Apolo também aparece como o deus da música, tocando sua lira para o deleite dos imortais,[14] e como o guardião dos cavalos de Eumelo, e do gado de Laomedonte.[15]

No Hino a Apolo, Homero descreveu desde seu nascimento em Delos até sua apoteose em Delfos. O hino abre mostrando Apolo já adulto, como o arqueiro sublime, entrando no palácio dos deuses e inspirando o temor em todos. Leto, sua mãe, o recebe e conduz ao seu assento entre os imortais, enquanto que seu pai Zeus lhe dá as boas-vindas, junto com os outros deuses. Depois o poeta passa a descrever as circunstâncias de seu nascimento. Leto, uma ninfa filha do titã Céos, foi amada por Zeus e engravidou de Apolo e Ártemis. Hera, esposa legítima de Zeus, descobriu o romance e voltou sua ira para Leto, que se viu impelida em uma longa peregrinação para encontrar um lugar onde pudesse dar à luz, sempre perseguida pela serpente Píton, posta em seu encalço. Parando na ilha de Ortígia, deu à luz Ártemis, mas só encontrou abrigo enfim em uma ilha flutuante, Delos, pois Hera ordenara a Gaia, a terra, que não oferecesse nenhum lugar de repouso para Leto. Ao pisar na ilha, Leto falou-lhe implorando que a recebesse, e fazendo o grande juramento em nome do Estige, prometeu-lhe erguer um templo e consagrá-la a seu filho, com o que a ilha aquiesceu à sua súplica. Entretanto, mesmo assistida pelas deusas Dione, Réia, Icnéia, Têmis e Anfitrite, por nove dias e nove noites Leto sofreu as dores do parto sem que Apolo nascesse, uma vez que Hera havia impedido Ilítia, a deusa dos partos, de socorrê-la. Mas as deusas finalmente enviaram Íris, a mensageira dos deuses, para que seduzisse Ilítia com a oferta de um magnífico colar de ouro e âmbar de nove cúbitos de comprimento, e assim, antes que Hera protestasse, carregada pela veloz Íris ela desceu do Olimpo para ajudar Leto, e logo Apolo nasceu. O infante foi então banhado pelas deusas, envolto em faixas e ornado com uma coroa de ouro. Antes que mamasse em sua mãe, Têmis deu-lhe de beber o néctar dos deuses, e fê-lo comer a ambrosia divina, conferindo-lhe a imortalidade. Imediatamente tornou-se adulto, soltou-se das faixas, bradou reivindicando a lira e o arco, e declarou-se o porta-voz da vontade de Zeus. Sua luz refulgiu, e Delos floresceu em ouro.[16]

Aimé Millet: Apolo entre as Musas da Poesia e da Música, c. 1860–1869. Ópera Garnier, Paris.

Em seguida Homero o mostra de novo no Olimpo, tocando sua lira e presidindo o coro das Musas, e logo o faz descer do céu e percorrer a Terra, procurando onde fundar seu culto. Chegando junto à fonte Telfusa, viu que era um local sobremaneira aprazível para erguer um templo e estabelecer um oráculo, mas a fonte advertiu-o que ali os homens ergueriam uma cidade barulhenta e não lhe dariam a devida atenção, e sugeriu que ele fundasse seu oráculo nas silenciosas encostas do monte Parnaso, o que ele fez, não sem antes matar o monstro Tífon, filho partenogênico de Hera, que ali vivia e devastava a região em torno, e a serpente Píton, que perseguira sua mãe. Em seguida procurou seus primeiros sacerdotes e, disfarçado de delfim, capturou um navio cretense e levou seus marinheiros para o sítio que escolhera, impondo-lhes a obediência, dando-lhes a direção do templo e do oráculo e prescrevendo os rituais que deviam ser realizados. Por ter-se revelado a eles sob a forma de um delfim, disse que deveria ser invocado sob o epíteto de Apolo Delfínio, e o oráculo se chamaria Oráculo de Delfos.[17]

Em sua Teogonia, Hesíodo, mais ou menos contemporâneo de Homero, fez apenas uma breve alusão a Apolo, mas outros autores depois deles deram versões alternativas para sua história. Diversas localidades reivindicaram o privilégio de serem seu local de nascimento: Éfeso, Tegyra, Zoster[15] e Creta.[18] Os egípcios e Cícero diziam que ele era filho de Ísis e Dionísio, e foi identificado também com os deuses solares Febo e Hélios, o egípcio Hórus, o Aplu etrusco e o Mitra oriental. Dizia-se que ele nascera em um dia sete, ou que nascera precoce, de sete meses, e por isso o número sete lhe era sagrado. Os dias sete de todos os meses lhe eram dedicados com sacrifícios, e seus festivais caíam geralmente num dia sete. Era membro do concílio dos deuses principais no Olimpo, tinha o sol como sua carruagem e como regente das Musas residia também no Monte Parnaso, em cuja base estava seu principal oráculo. Os animais a ele associados eram a serpente, o lobo, o delfim e o corvo, alguns autores acrescentam o cisne, o abutre e o grifo, e era amiúde representado com o arco e flechas, ou com a lira. Sua planta sagrada era o loureiro, com cujas folhas eram confeccionadas as coroas dos vencedores dos Jogos atléticos.[15][19]

Evolução e interpretações do mito

Como se lê em Homero, os primeiros de seus atributos foram o da morte súbita com suas flechas infalíveis, a música, a vingança e punição de violações da lei sagrada, o causador de doenças, e apenas secundariamente curador. Com o passar do tempo seu mito foi sendo enriquecido, e a enorme quantidade de epítetos que foram associados a seu nome o prova. Seu caráter primitivo, marcado pela violência, tornou-se mais brando, e ele foi erigido em um deus civilizador, curador, protetor, harmonizador e organizador, num justiceiro mais equilibrado e em um profeta completo.[20] Pitágoras teve um papel nessa transformação. Ele era considerado por uns um filho de Apolo, por outros uma encarnação do próprio deus, que descera ao mundo dos homens com uma missão terapêutica,[21] e é significativo que Pitágoras só sacrificasse em altares de Apolo, chamasse a si mesmo de um curador, tocasse a lira e desse grande importância à música e à divinação. Ensinando uma doutrina de forte base ética e que enfatizava a harmonia e a pureza, sua influência sobre a cultura grega foi enorme, na mesma época em que o culto de Apolo se disseminava.[20] Ademais, desenvolveu uma complexa teoria musical baseada em um sistema de proporções matemáticas onde os números simbólicos de Apolo ocupam lugar central. Esta teoria foi a base de toda a música grega de sua geração em diante e ainda permanece influente.[22] Também foi importante a assimilação de Apolo pelo Orfismo, cujo patrono mítico, o músico Orfeu, era acreditado como filho do deus. Seus ritos incluíam a música e a divinação, sua doutrina enfatizava a disciplina moral rigorosa, a purificação e o ascetismo, e incluía a crença numa vida beatífica após a morte.[19][23] O Hino a Apolo dos órficos declara a função do deus de harmonizador dos pólos opostos do cosmos com sua lira.[24]

Apolo então assumiu outros atributos, apareceram outras lendas, e diversos autores gregos, e depois os helenistas e romanos, o mostraram em poemas, em dramas e em iconografia. Até a letalidade assustadora de suas flechas pôde ser expandida para transformá-lo no deus da morte misericordiosa.[25] Para Denis Huisman a influência da imagem apolínea foi determinante para a formação da filosofia de Sócrates e, por consequência, a de Platão. Aristóteles referiu o mesmo, dizendo que de Delfos ele tomara o moto Conhece a ti mesmo, que se tornou o motivo organizador central de seu modo de vida e pensamento.[26] Platão enfatizou sua faceta organizadora na Religião, declarando que o Oráculo de Delfos devia ser consultado acerca de todas as questões relativas ao estabelecimento de santuários, sacrifícios e outras formas de culto de deuses, daimones e heróis; também sobre as tumbas e os ritos fúnebres, e as indicações para cargos religiosos públicos.[27] Também disse que ele havia descoberto a Medicina, a arte do arco e a divinação sob impulso do desejo e do amor, e por isso ele era um discípulo de Eros.[28] O poeta Calímaco o mostrou como o inventor da flauta e da lira - embora a tradição mais corrente diga que ele recebeu ambas de seu irmão Hermes - e canonizou a identificação entre Apolo e Hélios, o deus especificamente solar, criticando os que ainda faziam alguma distinção entre ambos, embora já Homero o chamasse de Febo, brilhante. Também seu papel de guardião de rebanhos se tornou mais marcado do que se lê em Homero, e por extensão se tornou o protetor dos pastores.[15] Pelo que se pode deduzir dos hinos fragmentários de Píndaro, Apolo surge como o regulador do céu e preservador da ordem do mundo, mantendo o sol sempre em seu curso, fazendo disso um símbolo do caminho da sabedoria. Com a pontaria infalível de suas flechas de luz, ilumina o intelecto humano, ressaltando sua ligação com o dom da profecia.[29][30] Também o declarou como o patrono das migrações dóricas.[15]

Apolo purificando Orestes com o sangue de um porco, pintura em vaso, c. 380–370 a.C. Museu do Louvre.

O poeta Alkaios o descreveu como o instrumento da Justiça de Zeus, guardião dos juramentos e das sentenças da lei, vingador das suas transgressões e punidor da hubris.[31] A faceta de seu caráter ligada à Justiça foi explorada de forma interessante na tragédia Eumênides, parte da trilogia Oresteia, de Ésquilo, retratando Apolo de forma ambígua. Primeiro o autor faz Tétis protestar, dizendo que Apolo estivera em seu festim, cantara para ela e lhe prometera a felicidade, e em seguida matara seu filho. Depois Orestes é obrigado por Apolo a assassinar a sua própria mãe Clitemnestra, mas ao fazer isso se tornou culpado de um crime contra o próprio sangue, coisa gravíssima na cultura da época. Assim o personagem, apesar de ter cumprido um mandamento divino, é atormentado pelas Erínias até que Apolo intervém como seu advogado num julgamento em Atenas, mas não obstante a defesa, o caso acabou indecidido, só sendo dado um parecer favorável a Orestes depois do voto de Atena. Depois Apolo o purificou com o sangue de um porco.[32] É válido assinalar que Platão, em sua República, teceu severas críticas a esta maneira de interpretação dos deuses na arte, dizendo que nada de útil trazia para a sociedade nem podia ser bom exemplo para a formação dos jovens. Continuou dizendo que era um atrevimento e um sinal de libertinagem fazer de um deus um personagem de uma obra de arte humana, sempre e necessariamente imperfeita, que atribuía a deuses traços de caráter e motivações próprios dos homens, privando por isso a arte de seu conteúdo ético e de sua capacidade como instrumento educativo.[33]

Ao mesmo tempo, na época de Platão já se tornara corrente uma visão de que Apolo era a antítese e o complemento de Dionísio, seu irmão, o deus dos excessos, das relações entre o corpo e a alma, da embriaguez, da orgia, das emoções descontroladas, da transgressão, dos mistérios ocultos, do teatro e das mênades, enquanto que Apolo passou a ser mais ligado à esfera racional, à vida cotidiana, à arte e à ordem social, preservando contudo seu papel de inspirador da profecia e portador da palavra divina, ou Logos, também um símbolo do espírito e do intelecto. Também para os iniciados nos Mistérios Órficos Apolo e Dionísio eram manifestações polares da mesma divindade. Como o arqueiro infalível e deus da luz, matador da serpente Píton, que era um símbolo das forças do mundo subterrâneo e do caos irracional, Apolo era uma imagem do iniciado que penetra nos mistérios da Natureza através da ciência e domina a animalidade da natureza humana através da vontade, do conhecimento e da disciplina; era, também por isso, o deus das expiações, purificações e penitências. Uma das versões de seu mito diz que ele mesmo, após matar a Píton, que era uma criatura divina, teve de se purificar e fazer expiações por oito anos em um exílio no vale de Tempe, sob a proteção de um loureiro. Sendo um deus curador e ligado à ordem social, por extensão foi associado com os ritos de passagem da infância para a idade adulta, tornando-se a imagem do educador ideal, provendo inspiração e instrução para o cultivo do corpo e da mente em um equilíbrio harmonioso e para uma correta inserção social do jovem na vida comunitária.[34]

Para os gregos esse equilíbrio era um dos objetivos de um amplo sistema ético-pedagógico conhecido como paideia, preparando para a realização da kalokagathia, ou seja, a reunião de todas as Virtudes dentro da esfera da Beleza, o que incluía a excelência física. Em seus atributos de iniciador e educador, Apolo foi elevado também à condição de patrono dos exercícios ginásticos - embora este papel fosse compartilhado com Hermes e secundariamente com Hércules -, com o resultado de ser-lhe atribuído o caráter de deus da beleza física. Os ginásios gregos eram postos sob a tutela de Apolo, não só por sua associação com o cultivo do corpo e a educação intelectual, artística, social e moral, mas também porque a ginástica era tida como tão valiosa para a promoção da saúde quanto a Medicina, da qual ele era igualmente o padroeiro. Em Atenas o ginásio fora posto sob a tutela de Apolo Likeios - daí também a origem da palavra Liceu como um local de aprendizado.[35][36][37][38]

Em várias de suas lendas Apolo tomou amantes masculinos, o que refletia a cultura grega antiga, onde o homossexualismo masculino era socialmente aceito e tinha, entre outras funções, um caráter pedagógico e ritualístico de grande importância. Um homem maduro, o erastes, escolhia um jovem, o eromenos, e fazia dele ao mesmo tempo amante e discípulo, tornando-se seu iniciador nos mistérios da vida adulta e nas suas responsabilidades sociais. Assim que surgissem os sinais da puberdade o jovem era declarado adulto e a relação se rompia. Ele então casava com uma mulher, constituía família e assumia por sua vez o papel de erastes, tomando para si um jovem eromenos e continuando a tradição.[39][40] Além disso, Apolo era em alguns locais adorado sob o epíteto de Carneios, chifrudo, onde atos de pederastia em público eram parte do ritual religioso de iniciação masculina. Sobrevivem relatos sobre a invocação a Apolo antes da realização do ato homossexual, onde o erastes suplica ao deus que sua arete, virtude, seja transferida para o eromenos.[41] Paralelamente, as representações de Apolo sempre como um homem jovem e imberbe apontam para seu caráter de efebo eterno, uma imagem da perene juventude.[42]

Efígie de Apolo em moeda de ouro cunhada por Filipe II da Macedônia.

Proclo, em sua Teologia Platônica, estabeleceu uma hierarquia divina onde Apolo era uma emanação de Hélios e figurava, junto com Hermes e Afrodite, como uma deidade intermediária entre os deuses do universo primordial e da esfera superior e o mundo dos mortais, formando juntos uma trindade cujo atributo principal era os de elevar as almas humanas até eles mesmos. Hermes seria o responsável pela elevação da alma até o conhecimento do Bem, e Afrodite até o plano da Beleza. Apolo teria a função de elevar a alma até a esfera da Verdade e da Luz da Razão através da música, cuja virtude residia em sua capacidade de produzir harmonia e ritmo. As Musas seriam, nessa hierarquia, emanações secundárias de Apolo. Proclo mais tarde, em Philebus, sintetizou o conceito de Bem como englobando Verdade, Beleza e Simetria, e ligou esses três aspectos respectivamente a três formas de vida, a do filósofo, protegido de Hermes, a do amante, devoto de Afrodite, e a do músico, seguidor de Apolo, e ligou essas formas a três tipos de loucura produzida pela inspiração divina, respectivamente a mania profética e filosófica, a mania erótica e a mania poética.[43]

Apolo com a coroa de raios e a auréola, mosaico romano em El Jem, Tunísia.

Cristo Pantocrator, Catedral de Cefalù, Itália.

Entre os romanos, seu oráculo era conhecido desde o tempo dos reis, mas o culto só se consolidou sob o império de Augusto. Ovídio fez dele o conhecedor do passado, do presente e do futuro, e dono do poder de todas as ervas medicinais,[44] Horácio cantou o deus mais alto que os deuses romanos, e Virgílio disse que na sequência das Idades do mundo a última seria regida por Apolo, o que era confirmado pelos célebres Livros Sibilinos, mas seu perfil era mais divulgado como curador e patrono das artes, e antes do que uma divindade real tinha mais um status de símbolo. Entretanto Augusto reavivou seu culto, colocou o Estado Romano sob a proteção de Apolo, mas identificado com Febo, a deidade solar romana, e ao longo dos séculos seguintes, por influência do Mitraísmo do Oriente, o culto se voltou mais para o Sol do que para Apolo propriamente dito, que teve suas múltiplas atribuições e seu antigo lugar preponderante entre os gregos resumidos à cura e à arte. Desde então tanto o poder religioso como o profano competiram pelo uso da simbologia solar.[45]

Apolo no cristianismo, nas artes e no Estado moderno

Com a ascensão do cristianismo os deuses pagãos caíram no esquecimento, e os Padres da Igreja e os filósofos cristãos contribuíram ativamente para esse processo, denunciando-os como falsos deuses. Lactâncio, por exemplo, ridicularizou os mitos de Apolo e dos demais deuses como uma impossibilidade óbvia - haviam nascido de uniões sexuais, o que via como inconciliável com a natureza divina, e dizia que se tratavam de simples mortais magnificados. Quanto a Apolo propriamente dito, Aristides analisou seu caráter e o acusou de estuprador, assassino e embusteiro, invejoso e iracundo, dizendo ainda ser um absurdo que alguém que não deveria reinar nem entre os mortais fosse considerado uma das potestades celestes. Entretanto, antes do ocaso final do Paganismo autores como Celso atacaram o cristianismo em bases semelhantes às que usaram os cristãos para destruir o Panteão pagão, perguntando como uma virgem poderia ter concebido, e se ela o pôde fazer, por que os deuses pagãos não poderiam amar mulheres mortais da mesma forma e gerar descendência; além disso, o deus que figurava nas Escrituras judaico-cristãs, frequentemente irado, assassino e vingativo, também não podia ser considerado um exemplo de virtude.[46] É de lembrar que mesmo entre toda a condenação do Paganismo, a teologia paleocristã foi largamente devedora da filosofia e da metafísica clássicas, especialmente dos neoplatônicos, como se prova na leitura da literatura patrística e na própria Bíblia, onde o Evangelho de João abre com as frases: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens". Se diz que Cristo é a encarnação do Verbo, o que imediatamente remete à identificação grega de Apolo com a Palavra Divina através da profecia. A rigor Apolo não reivindica a profecia como sua; ele é um deus poderoso, mas subordinado a seu pai, Zeus, o deus supremo, e necessariamente se coloca muito próximo dele em sua função de seu porta-voz. Homero, em seu Hino a Apolo, faz Apolo dizer: "Possa a lira me ser cara, e também o arco encurvado, e para os homens eu proclamarei em oráculos o infalível conselho de Zeus", e no Hino a Apolo órfico o deus é descrito como "a luz da vida", de modo que as similaridades entre as teologias cristã e pagã são evidentes.[6][47][48][49][50][51]

A visão negativa da mitologia grega continuou ao longo de toda a Idade Média, e Apolo chegou a ser identificado com o Diabo.[52] Mas a tradição popular de culto dos deuses solares era por demais arraigada para que seu significado pudesse ser obliterado pelos cristãos, e de fato vários dos atributos apolíneos foram transferidos para novos personagens da cena religiosa em mudança, numa "política de solarização", como referiu Christian Mandon. São Jerônimo orientou a liturgia do batismo dizendo que o cristão deveria morrer para o pecado e se voltar para o leste - onde nasce o sol - estabelecendo uma aliança com o "Sol da Justiça", o Cristo, em quem poderia renascer.[53] Em torno do século VI surgiu substituindo Apolo o culto do arcanjo São Miguel, cuja vitória sobre a "Antiga Serpente" - um dos nomes do Diabo - é o exemplo mais claro de paralelismo com a vitória de Apolo sobre a Píton. Seu culto se disseminou rapidamente na Idade Média, muitas vezes instituído sobre antigos santuários de Apolo, e em alguns lugares da Europa suplantou o do próprio Cristo.[3] Ao mesmo tempo, a iconografia de Apolo, especialmente aquela desenvolvida no período helenista-romano, foi absorvida rapidamente pelo Cristianismo para as primeiras representações de Cristo. Desde o século IV apareceram imagens de Cristo com atributos típicos de Apolo, como a auréola ou uma coroa de raios de luz, às vezes conduzindo uma quadriga, da mesma forma como Apolo-Febo-Mitra era figurado em pinturas e mosaicos mais antigos. Também na poesia dos séculos VI-VII Cristo imita Apolo, sendo descrito em hinos ambrosianos como o "Sol Verdadeiro" que dissipa as trevas. O Cristo ressurrecto se tornou, assim, o novo Apolo, um homem-deus, triunfante em sua ressurreição, atraindo todo o poder para si e irradiando-o imperialmente sobre toda a Terra. Para isso concorreu o desenvolvimento mais tarde de uma "teologia da luz", que teve seu florescimento no período gótico, a partir dos séculos XI-XII, e do conceito da Igreja Militante, cujo fruto típico foram as Cruzadas, que segundo Pierre Val foram uma interpretação apolínea do cristianismo.[54][55]

A associação entre ambos continuou viva pelos séculos seguintes. São Francisco de Assis compôs um hino em honra ao Irmão Sol onde dizia que o sol era a mais próxima imagem da divindade, e Petrarca elaborou uma teologia pessoal onde Cristo e Apolo aparecem ligados, numa imagem que penetra em todo o seu trabalho poético.[56] Para Denis Cosgrove, o tema da ascensão de Cristo para o céu, onde ele se tornou o Pantocrator, o supremo governante, portando o globo, símbolo do poder imperial, e/ou o livro da Lei, imagem de sua onisciência e sabedoria, quando refletido através da herança greco-romana se consolidou numa teologia da universalidade do Cristianismo, que com sua luz universal redimia todos os povos, e não mais apenas o "povo eleito" dos judeus.[4]

Ao longo do Renascimento, quando tudo o que se referia à Antiguidade clássica foi avidamente estudado e emulado, se pôde efetuar enfim um resgate dos mitos greco-romanos sem travestismos, em seu próprio direito.[57] Não deixa de ser simbólico o fato de que uma das mais expressivas representações clássicas de Apolo, o Apolo Belvedere, de Leocarés, tenha sido reencontrado numa escavação arqueológica nesta época, suscitando o entusiasmo generalizado entre toda a intelectualidade européia e influenciando gerações de artistas por séculos à frente.[58] Neste momento Apolo, como deus da luz, da beleza, das artes e da razão, se tornou uma imagem tutelar para os artistas e teóricos da arte, que estavam engajados em desenvolver uma arte figurativa baseada no racionalismo, no estudo anatômico científico e na geometria, junto com uma concepção de arte como uma inspiração divina.[59][60] Por sua interpretação como uma imagem da busca humana por um universo compreensível e organizado e por uma localização do homem nesta ordem cósmica, o mito de Apolo e Mársias foi objeto de representação renascentista particularmente copiosa, com mais de cem obras identificadas, uma tradição que continuou no Barroco. Também para os humanistas do Renascimento Apolo foi uma figura importante, muitas vezes associado a Cristo em seu caráter purificador e redentor.[61]

Luís XIV como Apolo, figurino para bailado de Jean-Baptiste Lully.

No terreno político, desde a época de Augusto se tornara um lugar-comum a associação do sol com o poder, a majestade e a glória régias, ao mesmo tempo em que essa associação pessoal do monarca com o astro do dia veio a ser um pretexto fácil para os potentados justificarem pretensões imperialistas e absolutistas.[62] Essa ideologia foi renovada pelos príncipes renascentistas, que reivindicaram para si a posição sinóptica, universal e centralizadora de Apolo, estimulando a formação de um imaginário tingido pelas idéias de totalidade, transcendência, radiância e distanciamento intelectual, atualizando uma antiga tradição mas agora embasada em fontes originais redescobertas, e dando-lhe o caráter de novo projeto cultural.[63] O caso mais típico dessa associação entre o sol e a monarquia na Idade Moderna foi o de Luís XIV da França, cognominado o "Rei-Sol", instaurando uma complexa ritualística cortesã para enfatizar sua condição exaltada e colocando toda a alta nobreza debaixo de seu controle direto. Nas artes de seu tempo a imagem do sol e a menção a Apolo são onipresentes, e o rei se apresentava publicamente em bailes e festas como uma personificação da divindade solar.[62][64]


A atualidade do mito
“ Conhece a ti mesmo.
Nada em excesso.
Inscrições no templo de Apolo em Delfos ”

Em tempos recentes o mito de Apolo continuou sendo trabalhado. Durante o Iluminismo seu papel de fonte da luz da Razão e dissipador da ignorância e do erro se tornou generalizadamente reconhecido, mas também a universalidade da sua luz deu margem a interpretações que justificavam a erradicação de potenciais divergências e particularismos individuais.[65] Winckelmann, porém, o maior teórico dos neoclássicos, o colocou nas alturas, dizendo que a descrição de Apolo exige o estilo mais sublime: uma devoção a tudo o que se refira à humanidade.[66] Com os românticos sua posição variou; Shelley o viu mais como um símbolo da tirania cultural e política,[65]John Ruskin o considerava o símbolo da luz combatendo as trevas, e o poder da vida combatendo a decrepitude.[67] e Oscar Wilde o via como uma imagem da pureza do mundo natural em contraste com a decadência da civilização,[68] mas entre os acadêmicos desde o século XIX se tornou patente a importância do estudo dos mitos para prover uma chave de interpretação da sociedade e do homem modernos, com estudos pioneiros realizados por Friedrich Max Müller no campo da Religião Comparada e Friedrich von Schelling na área da Filosofia da Mitologia, entre outros.[69]

Para Nietzsche Apolo era o deus dos sonhos, em contraste com Dionísio, o deus das intoxicações, e ambos os estados eram para ele os protótipos originais de toda a arte (Urbilder), nos quais os instintos artísticos da Natureza, a Unidade Primordial, encontram sua suprema e imediata satisfação. Nietzsche acreditava que as figuras divinas gloriosas apareceram para os mortais primeiro em sonhos, e que o valor dos sonhos estava em que o homem esteticamente sensível mantinha uma relação com os sonhos que era a mesma que os filósofos mantinham com a realidade da existência; o homem sensível era, assim, também um observador da vida, pois as imagens oníricas forneciam uma interpretação para a sua vida, e por isso os sonhos eram vivenciados pelos homens como uma necessidade jubilosa e como uma fonte de prazer intenso. Seguia dizendo que a necessidade jubilosa da experiência onírica havia sido corporificada pelos gregos em seu Apolo, que se elevava então como a imagem gloriosa e o agente do processo de individuação, um processo que se caracteriza pelo equilíbrio e moderação, lembrando os ditos associados desde longa data a Apolo, inscritos no seu templo em Delfos, que recomendavam o autoconhecimento e a moderação. Em outras palavras, Apolo e Dionísio eram pólos complementares de uma mesma essência, e a desordem irracional, a vitalidade exuberante, a instabilidade e fugacidade das impressões dionisíacas deviam ser tornadas objetivas, fixas, compreensíveis e transmissíveis através do poder moderador, articulador e organizador de Apolo. Com sua teoria de contraste complementar entre o apolíneo e o dionisíaco - que de fato já era clara para os próprios gregos antigos - ele lançou as bases imediatas para sua elaboração posterior pela Psicologia, Estética, Arte e Filosofia modernas, numa discussão que continua até os dias de hoje e vem sendo trabalhada por grande número de autores, expandindo-a para outras áreas do saber.[5][70][71][72][73]

Para Carl Jung Apolo representava uma tipologia psicológica específica, caracterizada pela introspecção, introversão e contemplação. James Hillman e William Guthrie consideraram o princípio apolíneo, ou pelo menos uma absorção de traços de seu perfil, como indispensável quando uma pessoa necessita de um senso de forma, de disciplina, de distanciamento, de clareza de pensamento e objetividade, e, para Gregory Nagy, Apolo é uma imagem da palavra à espera da concretização, de uma juventude que nunca chega à maturidade, de um homem que jamais supera o seu pai.[42][70][74] Vincenzo Vitiello viu em Apolo uma prefiguração mítica do conceito de que toda a tradição filosófica do ocidente pode ser descrita como um esforço continuado para o desenvolvimento da faculdade de pensar. Também leu seu mito como um relato da violência necessária para a estruturação do cosmos a partir do caos.[75] Trindade & Schwartz usaram as relações entre Têmis e Apolo para debater o processo de dessacralização do sistema judiciário moderno, considerando que Têmis dera a ambrosia e o néctar para Apolo em seu nascimento, e que ela era uma divindade tutelar anterior do oráculo que Apolo assumiu em Delfos. Para os autores, Têmis representa a Justiça em abstrato, e Apolo o instrumento de sua difusão entre os homens, mas através de uma sensibilidade que chamam de poética e divinamente inspirada. Diante do que vêem como uma banalização tanto da Justiça como da Arte nos dias de hoje, advogam a restauração da conexão antiga entre Apolo e Têmis, a fim de que se reconduza as pessoas a um plano em que seja possível compreender a beleza da Lei, reconhecer a distinção entre certo e errado e aceitar a autoridade da Justiça como essencial para o processo civilizador, do qual Apolo é o símbolo.[76]

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